O Mau e o bem.
- Eram três da manhã, eu me lembro bem. Havia perdido o meu sono, que geralmente não demorava a voltar. Procurava alguma coisa na geladeira, programava mentalmente, que talvez, pudesse ver um pouco de televisão, antes de o meu sono retornar.Desisti de procurar algo na geladeira, nem mesmo estava com fome. Era só uma distração qualquer, para tardar o fato de que não conseguiria dormir mesmo. Dirigi-me a sala, a fim de ver alguma coisa. Sentei no sofá verde escuro que havia comprado há pouquíssimas semanas. Com o controle já em mãos, o posicionei para a TV. Mas antes que pudesse apertar o botão, alguém tocou três leves batidas em minha porta. Mas a terceira batida pareceu arrastar-se, como se uma mão cansada deslizasse até o fim dela, ao lado de fora.
É de se imaginar que eu não esperava ninguém às três da manhã. Larguei o controle no sofá e fui atender quem quer fosse, afinal, às três da manhã, alguma coisa tem de ser!Era uma noite fria, realmente. Eu vestia um roupão azul-marinho aconchegante, pude sentir como um empurrão, o vento gelado secar minha boca, e minhas pálpebras pedirem arrego, com o abrir da porta. Meu sono havia voltado.
Uma morena deslumbrante, mas extremamente cansada, carregava uma criança no colo. Não, ela não era só deslumbrante. No momento em que me olhou nos olhos, pude enxergar quase sua alma, e ela a minha. Através de sua pupila saltada, a íris castanho-claro brilhava de comoção, medo e... Bondade.
Sua alma era clara, nossa, quanta bondade! Quem era essa mulher?
- Me ajude! - Ela urrou, caiu em pranto, amolecendo os joelhos e caindo, erguendo até mim, a criança. Com certeza, havia acabado de dar a luz, até ali eu não havia notado, mas a criança chorava, e o cordão umbilical ainda as grudava, mantinha-as ligadas. Seus braços pareciam não aguentar nem o peso que a criança tinha, - Por favor! - gritou chorando muito mais.
Senti uma compaixão enorme, num ato de misericórdia, abracei a criança e a afaguei em meu colo.
- Entre, entre rápido. Já está tarde - Disse eu à mulher, com a criança em meus braços, ajudei a mulher a levantar e a trouxe para dentro.
Já no momento em que a olhei, ela parecia pronta a morrer, mas por algum motivo, que hoje já não desconheço, durou mais. Eu amei aquela mulher, que mesmo deitada na cama, em todo tempo, alegrou aqueles meus dias. Ela já me conhecia, de alguma jeito.
Mas eu a amava de outra maneira, era uma ligação desconhecida, a qual eu tinha uma imensa curiosidade para descobrir. Em seu terceiro e último dia como hóspede em minha casa, poucas horas antes de falecer, ela parecia bem, e veio ao meu encontro, no jardim da 'nossa' casa.
- Senhor Austin? - Ela me chamou, pegando em meu ombro direito. Um vento forte, numa tarde radiante, balançou os cabelos negros. O castanho-claro que antes dominava seus olhos agora eram duas ônix perfeitamente esculpidas, os olhos estavam mais negros que os cabelos encaracolados da morena.
- Seus olhos... - Sussurrei, - Como... O que está acontecendo? - Ela esboçou um sorriso de paz.
- Estou morrendo.
- Mas, - traguei mais ar, desanimado, talvez. - Mas o que foi tudo isso, e sua filha?
Ela sorriu novamente.
- Sua sobrinha, quer dizer. - O vento parou, como num susto incessante, numa pausa no tempo para me acordar de tudo que acontecia. - Quer acordar? - Ela deu novamente aquele sorriso de paz, sua voz era doce. E como eu nunca havia percebido, naquele momento pude enxergar, o quando éramos parecidos fisicamente.
A ônix se desfez, um olho por vez, pareciam ter vidas separadas. O olho esquerdo, ainda permanecia com a íris negra, como uma noite sem lua. Mas o olho direito, estava agora, claro, saindo do negro para o cinza, e quando a íris chegou ao branco, as duas pálpebras se fecharam. E mesmo com as pálpebras fechadas, os olhos ainda reluziam o híbrido entre o mau e o bem, um negro, e um branco.
A morena na minha frente estava perdendo a cor, eu só conseguia assistir aquilo tudo, e mesmo com as suas palavras "estou morrendo" ecoando pela minha mente. Sentia, de alguma forma, que ela tinha controle sobre a situação, e queria aquilo. Mais que tudo. Seus cabelos já não eram mais pretos, estavam clareando.
As borboletas, fizeram um círculo em torno a seus pés. Ela abriu um braços e agora, sua pele e seus cabelos não contrastavam mais com o vestido branco que eu lhe dera. Já não parecia mais a mesma mulher, sua pele, estava mais alva que a neve e os cabelos, que antes negros, tomavam a forma de um loiro embranquecido.
Seus braços desceram, e vieram de encontro ao meu pescoço, num abraço de despedida. E ela morreu abraçada a mim, em meus braços.
Fim do primeiro capítulo.